quarta-feira, 13 de julho de 2011

O radicalismo de Godard


Dos grandes cineastas históricos ainda vivos, Jean-Luc Godard é o que eu tenho menos simpatia. Pelo menos do seu trabalho dos últimos 10 ou 15 anos. Bem sei que é um monstro sagrado da história do cinema, uma referência incontornável, um visionário que revolucionou a sétima arte, um realizador-chave da "nova vaga" francesa, etc.

Um cinéfilo tem as suas preferências, e para mim Godard é daqueles cineastas que, apesar de indubitavelmente talentoso, não me comove. E a emoção é parte essencial da linguagem artística. Gosto dos filmes do Godard dos anos 60 ("A Bout de Soufle", "Band à Part", "Le Mépris", "Pierrot le Fou", "Alphaville", "Wekkend"...), mas já não adiro com o mesmo entusiasmo aos filmes mais radicais do realizador franco-suíço.

E falo, particularmente, da sua mais recente obra, "Film Socialism", uma obra que vi ontem no cinema e que me deixou estupefacto. Godard refuta quaisquer resquícios de narrativa convencional (já o fazia antes, mas nunca com o radicalismo de agora) e explora à saciedade fragmentos de imagens, diálogos e sons que se estilhaçam a cada segundo. Para ver este filme, o espectador é forçado a uma concentração desmedida, tal a incrível avalanche de estímulos audiovisuais a que é submetido.

Sabe-se que "Film Socialisme" é constituído por três movimentos (ou secções); sabe-se que o filme lança farpas à Europa (mais uma vez), ao capitalismo, à falência das ideologias, recorrendo a imagens de arquivo, cortes abruptos e inesperados da montagem, a enquadramentos de câmara improváveis, a um ritmo avassalador de ideias, sons, memórias, informação em demasia. Radicalismo formalista do qual não retiro prazer estético.

É desse mal, quanto a mim, que padece o filme de Godard: à custa de tanto querer ser vanguardista e experimentalista - mesmo nos seus veneráveis 80 anos de idade -, o seu cinema enreda-se num formalismo levado às últimas e redundantes consequências. Cerebral, frio e metódico em excesso.

Não admira que "Film Socialisme" tenha sido recebido com reacções totalmente díspares: houve quem o comparasse à magnitude da obra literária "Ulisses" de James Joyce, e houve quem o cilindrasse pela petulância intelectual, pela linguagem audiovisual exacerbada e pela abstracção excessiva (parece que Godard, tendo filmado pela primeira vez com o sistema HD, se deixou deslumbrar com as potencialidades do mesmo - as brincadeiras visuais são mais do que muitas).

Gosto de propostas cinematográficas que me desafiem e provoquem, mas não a um nível como o cinema de Godard faz. O seu cinema actual é um cinema que me deixa exausto e desorientado, e pior: que não me provoca um pingo de emoção estética, que não me inspira nem me estimula. Saía da sala de cinema cansado pela frieza do que tinha visto e 10 minutos depois deixei de pensar no filme.

Há quem diga que "Film Socialisme" é já a manifestação visionária do "cinema do futuro". Pois que seja. Subjectividade por subjectividade, eu prefiro um plano-sequência de um qualquer filme do Béla Tarr do que este "cinema do futuro". E reconheço que "Film Socialisme" é um objecto essencial para ser discutido e analisado numa aula de cinema, de teoria da arte ou de comunicação visual.

(Nota: agora os defensores acérrimos do Godard podem encher a caixa de comentários com críticas... mas construtivas, se faz favor).

11 comentários:

Sam disse...

Antes de qualquer detractor, fica sabendo que recebes o meu inteiro apoio na forma como julgas FILM SOCIALISME (e, por acréscimo, a carreira recente de Godard).

É a obra de um realizador sem interesse em comunicar com qualquer tipo de público, apenas desejando mostrar ao mundo o que o seu "umbigo" lhe ditou...

E espanta-me a quantidade de (desajeitas) teorias que li acerca deste filme — para mim, pode-se encarar FILM SOCIALISME de qualquer ângulo e nada de lá retirar.

Cumps cinéfilos.

Unknown disse...

Sim, está bem vista a questão da comunicação. Godard filma para si e não lhe interessa comunicar com o espectador. O labirinto do seu cinema descarta essa possibilidade, procura o caos, a fragmentação, a desorientação total.

Rui Gonçalves disse...

Respeito a obra de Godard, sobretudo pela liberdade estética e criativa. Mas, tal como o Victor,o Godard que gosto e admiro (imenso) vai até finais da década de 60. A partir daí, nunca mais me entusiasmei com o caminho por ele seguido, salvo uma ou duas excepções: Nouvelle Vague e, talvez, Je Vous Salue Marie. No essencial, estamos de acordo. P.S. Ainda que gostasse muito do Godard actual, não confundo uma opinião pessoal como a minha com o direito que os outros têm de pensar de forma diferente. Como sempre defendeu, nos seus filmes sublimes, Renoir: todos temos as nossas razões. Não me importo, obviamente, é de discutir os argumentos de cada um, pois são eles que, por vezes, nos fazem mudar de opinião. :-)

blueangel disse...

Não se pode agradar a todos, por isso somos todos diferentes.
Já viu o que era gostarmos todos do mesmo?
Um tédio!
Mesmo realizando para si próprio como é referido aqui, não quer dizer que o público, não possa entrar no seu trabalho.

Para quê dissertar tanto?

Não estou aqui a mostrar descontentamento perante as suas palavras, o blogue é seu e é livre de escrever o que quer. Eu posso concordar ou não com aquilo que escreve, ou apenas reter o que me interessa.

''procura o caos, a fragmentação, a desorientação total''...acha?

Uma boa noite

Blue

Vasco disse...

"Gosto de propostas cinematográficas que me desafiem e provoquem, mas não a um nível como o cinema de Godard. O seu cinema actual é um cinema que me deixa exausto e desorientado, e pior: que não me provoca um piango de emoção estética, que não me inspira nem me estimula. Saía da sala de cinema cansado pela frieza do que tinha visto e 10 minutos depois deixei de pensar no filme."

Fui ver na estreia e, pensei exactamente o mesmo! porra! o "film socialism" e o "elogio ao amor" são filmes para ..um GRANDE cinéfilo ou.. para algum budista cuja capacidade de concentração inveja os demais.

Vasco

p.s:. De JLG só gosto da "era Anna karina"

Vasco disse...

Ah e já agora entrou em grande para os próximos 3000posts eheh

Vasco

João Lameira disse...

Eu não gostei particularmente do "Film Socialisme" e não conheço a maior parte dos filmes recentes do Godard - também eu prefiro a fase "Karina". No entanto, Victor, parece-me que os defeitos que lhe apontas ou não são defeitos ou, noutro caso, seriam qualidades. Exigir a participação do espectador - invulgar, é certo - é mau? Fazer o espectador sair da sua "zona de conforto" é mau? Um realizador levar avante a sua estética - e até deliciar-se com o HD - é mau? O cinema tem de ser sempre narrativo e pegar o espectador pela emoção? (Esta é para o Samuel com quem já discuti o filme noutra altura), Também tenho alguma dificuldade em aceitar que o Godard não esteja a comunicar com o público. A partir do momento que o filme sai cá para fora há uma comunicação. Pode não ser a normal(izada), pode não ser fácil, mas está lá. E da mesma maneira que "pode-se encarar Film Socialisme de qualquer ângulo e nada de lá retirar", pode-se retirar tudo. Depende de quem o vê - este filme depende muito de quem o vê (com isto não quero dizer que quem não gosta, não entende ou que lhe faltam conhecimentos, às vezes é mesmo uma questão de abertura a essa comunicação). De qualquer forma, o meu maior problema com o filme é a facilidade de algum discurso, o facto de ser uma espécie de reader's digest das questões godardianas (e eu sinto isto sem ter visto, como já disse, a maioria dos últimos Godard). Mas, por outro lado, há sempre um ou outro momento que o faz valer a pena.

Carlos de Figueiredo disse...

Sempre considerei Godard um realizador exageradamente sobrevalorizado, particularmente a sua obra a partir do final dos anos 60. Os seus filmes são excessivamente presunçosos, são quase manifestos que pretendem provar os méritos estéticos e formais do seu autor. O cinema deve ser provocante, desafiante e intelectualmente estimulante - nisso todos estaremos de acordo. Mas a diferença entre o artesão e o artista é que o primeiro domina a técnica, mas o segundo insufla a sua obra com algo de intangível, que cria uma ligação emocional e psicológica com o espectador. Ao ver grande parte da obra de Godard admiro apenas o seu domínio das facetas técnicas do cinema (composição, montagem, etc), mas não sinto qualquer comunhão com as personagens, com a narrativa ou até com os conceitos ali expressos. Daí, talvez, essa sensação de frieza aqui mencionada neste blog.

Anónimo disse...

concordo inteiramente contigo Victor....eu fiquei mesmo desorientada!
tila

Unknown disse...

"Mas, por outro lado, há sempre um ou outro momento que o faz valer a pena." - João Lameira

Claro que há momentos que valem a pena. Eu eu até referi quais no meu post.

Carlos: concordo com a tua opinião.

Annie disse...

Gosto muito deste teu post!

"Se Godard é Godard... eu tenho tempo de lá chegar!"

http://tenuebolbo.blogspot.com/2011/05/eu-na-minha-ignorancia-vi.html