domingo, 28 de setembro de 2008

Vivemos uma felicidade paradoxal


Em 1993 li um livro que produziu em mim uma nova visão sobre o mundo, um livro radical e ousado escrito por um filósofo francês que viria a ser um dos grandes críticos da sociedade de massa (não sem controvérsia, como convém): Gilles Lipovetsky. O livro chamava-se "A Era do Vazio - Ensaio Sobre o Individualismo Contemporâneo" (Relógio D'Água, 1989). O autor fazia uma crítica profunda dos paradigmas da sociedade contemporânea, analisando as relações sociais, a falência do modelo pós-moderno, a crise do liberalismo galopante, a crise da cultura de vanguarda, hoje assente em manifestações estereotipadas e inconsequentes. Eis a observação mais pertinente de Lipovestsky acerca do estado actual da arte: "A moda dos 'ismos' já passou. As manifestações estrondosas do início do século, as grandes provocações, deixaram de ser apreciadas hoje em dia. Perda de fôlego da vanguarda, tal não significa que a arte esteja morta, que os artistas já não tenham imaginação, mas que as obras mais interessantes se deslocaram, já não procuram inventar linguagens de ruptura. As experimentações continuam mas com resultados pobres, a arte conhece a sua fase depressiva. A situação pós-moderna da arte já não tem a ver com nenhum vector revolucionário, perdeu o seu estatuto pioneiro e desbravador, esgotou-se. O pós-modernismo não passa de um outro nome para designar a decadência moral e estética do nosso tempo."
Uns anos mais tarde, Lipovetsky lançaria outro livro arrasador sobre a sociedade contemporânea - "O Império do Efémero" - desta vez analisando o mundo da moda, da publicidade, das marcas de luxo e do entretenimento e de como estas componentes da vida social podem provocar a alienação do indivíduo. Há menos de um ano, O filósofo e ensaísta francês editou a sua mais recente e controversa obra: "A Felicidade Paradoxal - Ensaio Sobre a Sociedade do Hiperconsumo" (Edições 70), um olhar sobre a nossa civilização à luz de um novo estádio: o hiperconsumo. Lipovetsky defende que o consumidor moderno já não consome apenas objectos e bens, mas também cidadania, solidariedade, ética, ecologia que os media e as grandes instituições vendem ao cidadão comum. Todas as grandes instituições sociais são colonizadas pelo consumismo. Numa entrevista ao Público há um ano, Lipovetsky afirma: "O drama é que até os pobres são hiper-consumidores, não lhes basta comer, também aspiram à existência que vêem na publicidade e na televisão. O consumo tem uma função terapêutica, funciona como forma de esquecer os males da individualização: quando as mulheres estão deprimidas vãos às compras, é um lugar-comum. É uma pequena droga, equivalente à missa de antigamente. Existe hoje um consumo-mundo, justamente porque já não existe Deus. Hoje a própria religião entrou numa lógica de consumo. A sociedade democratizou o conforto e a qualidade de vida, mas o indivíduo, divorciado da política e do interesse colectivo, centra-se num total individualismo e na busca pelo prazer através do consumo."
Gilles Lipovetsky, apesar de não ter sido o primeiro pensador a reflectir sobre a sociedade de consumo, apresenta neste seu último livro uma visão extremamente actual e pertinente das relações do homem com os estímulos que o rodeiam, escalpelizando de forma crítica, os pequenos males que corroem os alicerces da nossa sociedade. Pequenos males que fomentam este estado de "felicidade paradoxal" em que vivemos.

4 comentários:

Rolando Almeida disse...

Bem, o Lipovetsky se calhar esqueceu-se de referir que a sociedade de consumo dá jeito para vender os livros dele :-) há tanta, mas tanta coisa boa que temos na sociedade de consumo...
abraços

Anónimo disse...

Bem, fiquei com uma vontade enorme de ler o livro. Foi já para a minha lista de futuras leituras.
A sociedade de consumo trouxe-nos coisas boas, como qualquer outra coisa, porque tudo neste mundo é um pau de dois bicos. Mas são mais as más do que as boas, no caso do consumismo.

José Magalhães disse...

Li "A era do vazio" e o problema do Lipovestky é exactamente este pessimismo que funciona sempre nesta fórmula: se dantes era mau, agora é pior porque é assim assado, consumista pós-moderno e egoísta.

Este é como o Jean Baudrillard, mas sem o brilhantismo e esplendor poético de linguagem deste.

São daqueles autores em que a gente lhes concede toda a razão, mas que sabe a pouco e não respondem à questão: ok, é tudo mau, e agora? o que fazer? De que maneira pode ser melhor?

São o que Kierkegaard poria na categoria de "autores escandalizados": aqueles que sabem aquilo que não querem

Unknown disse...

Joe: não vejo porque deveria Lipovetsky apresentar uma solução para a análise pessimista da realidade que o rodeia. Ele é acima de tudo um filósofo, e desde cedo me ensinaram na escola que a filosofia levanta questões, interpreta a realidade, problematiza, e não cede à tentação de apresentar soluções para os problemas enunciados. Esta tarefa, parece-me a mim, compete às ciências exactas, que desenvolvem claramente um método científico segundo objectivos pré-definidos e mensuráveis.
Ora, o que Lipovetsky faz é uma radiografia da sociedade contemporânea, analisando ponto por ponto os aspectos que lhe interessa dissecar. Pode-se concordar ou não com ele - e eu concordo - mas estou em crer que a sua visão não é assim tão distinta da do Beaudrillard - que, aliás, foi um autor que iniciou muito antes de Lipovetsky as hostilidades para com certas manifestações da sociedade contemporânea. É verdade que a escrita de Beadrillard é muito mais polida e académica (no ponto de vista filosófico e linguístico), mas nem por isso deixa de ser menos pessimista - o seu livro "A Sociedade de Consumo" é devastador.
Mas nenhum destes autores se compara à verve ultra-pessimista do escritor/filósofo romeno Emile Cioran. Pode parecer paranóia depressiva, mas eu tenho uma certa atracção fatal por escritores pessimistas. E é minha opinião que os pessimistas são sempre melhores escritores do que os optimistas. Ok, assumo que esta é uma afirmação provocatória... ;)