segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

É hora do novo ano


Enquanto escrevo, faltam apenas 6 horas para o início de 2008. Por tal, desejo a todos um novo ano cheio de saúde, amor, trabalho e dinheiro (por esta ordem, ou talvez não). Ah! E muita cultura.
Abraços!

domingo, 30 de dezembro de 2007

2007 - escolhas são escolhas


É inevitável. O calendário marca o fim de 2007. E no final do ano, fazem-se as recensões do melhor (e pior) do ano que passou. Já tinha colocado o post sobre os melhores discos, aqui e aqui; agora é a minha lista pessoal (e subjectiva) de filmes e livros. Do cinema há ainda títulos que quiçá poderiam incluir-se na lista mas que ainda não vi (os novos Cronenberg e Van Sant, por exemplo).

FILMES 2007:

1 – INLAND EMPIRE – DAVID LYNCH
2 – PECADOS ÍNTIMOS – TODD FIELD
3 – CONTROL – ANTON CORBIJN
4 – BUG – WILLIAM FRIEDKIN
5 – CARTAS DE IWO JIMA – CLINT EASTWOOD
6 – A VIDA DOS OUTROS - FLORIAN DONNERSMARCK
7 – ZODIAC – DAVID FINCHER
8 – O BOM ALEMÃO – STEVEN SODERBERGH
9 – DEATH PROOF – QUENTIN TARANTINO
10 – O LIVRO NEGRO – PAUL VERHOEVEN
11 – ZIDANE – RETRATO DO SÉCULO XXI – GORDON / PARRENO
12 - HALF NELSON - RYAN FLECK
13 - SHORTBUS - JOHN CAMERON MITCHELL
14 - 300 - ZACK SNYDER
15 - RATATUI - BRAD BIRD

Cinema - acontecimentos do ano:
- Mortes de Bergman e Antonioni
- Aclamação internacional (sobretudo nos EUA) de Pedro Costa
- Filme “Corrupção” e conflito realizador vs. produtor
- Encerramento de salas de cinema de autor – Quarteto, Nimas e King
- O apogeu do género documentário – Al Gore, "O Grande Silêncio", "Sicko", Doclisboa…
- Prémios para documentário "Ainda Há Pastores?"
- Sucesso de séries de televisão - 24, Prison Break, Dr. House, Lost...
- Editora Midas Filmes – edições DVD de cinema de autor
- Filme em qualidade 3D ("Beowulf")

Melhores edições DVD do ano:
- Colecção Fassbinder
- Colecção Tarkovski
- Colecção Hal Hartley
- Colecção Aalin Resnais
- Edição especial de "Blade Runner"
- Edição "Hiroshima Meu Amor + "Noite e Nevoeiro"
- Edição especial de Leni Riefenstahl
- Colecção "Os Malucos do Circo" - Monty Python
- Colecção Robert Bresson
- Pack Douglas Sirk
- "Histórias do Cinema" - Godard

Música - acontecimentos do ano:
- Golpe fatal na indústria discográfica – Radiohead, Madonna, Prince
- Morte de Tony Wilson, Stockhausen, Ligeti, Rostropovitch, Pavarotti e Oscar Peterson
- Ornette Coleman ao vivo na Gulbenkian
- Actividade cultural da ZDB
- Reconversão do jornal BLITZ para a revista BLITZ
- Nova orquestra de Câmara Portuguesa de Pedro Carneiro
- Profusão de concertos comentados
- Sucesso e qualidade do festival FMM Sines
Reedições do ano:
- Young Marble Giants - Colossal Youth
- Laurie Anderson - Big Science
- David Bowie - Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars
- Leonard Cohen - Songs of Love and Hate
- Pink Floyd - The Piper at the Gates of Dawn
- Sonic Youth - Daydream Nation
- John Coltrane - My Favourite Things: Coltrane at Newport

LIVROS :

O FIM DA FÉ – SAM HARRIES
DEUS NÃO É GRANDE – CRISTOPHER HITCHENS
A DESILUSÃO DE DEUS – RICHARD HAWKINS
LENI – VIDA E OBRA DE LENI RIEFENSTAHL – STEVEN BACH
SOBRE HUMANOS E OUTROS ANIMAIS - JOHN GRAY
TODO O MUNDO – PHILP ROTH
AUTOBIOGRAFIA DOS MONTY PYTHON
GUIA TERAPÊUTICO DO CINEMA
– PEDRO MARTA SANTOS
GORE VIDAL – NAVEGAÇÃO PONTO POR PONTO
APRENDER A REZAR NA ERA DA TÉCNICA – GONÇALO M. TAVARES
CAL – JOSÉ LUÍS PEIXOTO
PURA ANARQUIA – WOODY ALLEN
O HOMEM EM QUEDA - DON DELILLO
BREVE HISTÓRIA DO FUTURO - JACQUES ATTALI

Livros - acontecimentos do ano:
- Consagração de Gonçalo M. Tavares e Valter Hugo Mãe
- Crescimento dos e-books
- Debate entre Vasco Pulido Valente e Miguel Sousa Tavares
- Proliferação editorial de livros sobre Salazar
- Abertura da megalivraria Byblos
- Paes do Amaral e o domínio do mercado livreiro
- Exagero de edições: 14 mil livros no ano, média 100 por semana.
- Proliferação massiva de romances históricos sucedâneos do Código DaVinci

Somos (realmente) humanos?

É um livro que foi publicado em Fevereiro deste ano que termina amanhã. Passou ao lado de muita gente mas vale muito a pena lê-lo. Nem que seja apenas passar os olhos por ele. "Sobre Humanos e Outros Animais" de John Gray, filósofo inglês de uma lucidez e frontalidade difícil de igualar no panorama intelectual contemporâneo. O tema crucial do livro centra-se na ideia de que a humanidade se engana ao acreditar que ocupa um lugar de destaque no universo, que pode controlar seu destino e algum dia será capaz de construir um mundo melhor. Defende ainda que a história do homem é sobretudo pautada por um ciclo intermitente de anarquia e tirania e que traz (o homem) os genes da (auto)destruição. É, ao mesmo tempo, uma obra de cariz filosófico (que se lê sem amarras herméticas próprias da linguagem filosófica) e um ensaio histórico altamente pertinente sobre o presente e futuro da humanidade. Um livro pessimista? Realista? Excessivo? Corrosivo? Catastrofista? Talvez represente a súmula destas e de outras tantas provocadoras premissas.
Entrevista ao autor aqui.

Funny how?

Do que falamos quando falamos que determinado assunto ou acto é engraçado? É por causa desta interrogação que me lembrei deste espantoso exercício de interpretação. Trata-se do filme "The Goodfellas" ("Tudo Bons Rapazes", 1990) de Martin Scorsese. O fabuloso Joe Pesci está à mesa com o resto de "goodfellas", entre os quais o não menos fabuloso Ray Liotta. Pesci conta as aventuras criminosas num tom descontraído e hilariante; Liotta ri-se à gargalhada como um louco, até que a dada altura diz a Pesci: "you're so funny". Pesci quebra a boa disposição e pergunta cinicamente: "funny how, funny like a clown?" Instala-se um silêncio e o ambiente crispa-se. É um duelo de tensões impressionante até ao momento em que Pesci assume que estava a brincar com Liotta.
É uma das cenas memoráveis do genial filme de Scorsese: o ambiente criado, os diálogos ritmados, as gargalhadas espontâneas de Ray Liotta (parodiadas agora no filme de animação "A História de Uma Abelha"), o clima de tensão que engana o actor e o espectador, e as interpretações de Pesci e Liotta fazem desta cena um incrível jogo de comunicação e um magistral momento de cinema. A propósito desta cena, Scorsese esclareceu que grande parte da sequência é... improvisada pelos próprios actores, facto que só eleva a qualidade da mesma.

Visão da música do Século XX


Alex Ross, um eminente jornalista cultural (sobretudo musical) da eminente revista The New Yorker, acaba de lançar um (repito) eminente livro sobre a evolução dos principais movimentos musicais desde o final do Século XIX até aos dias de hoje - "The Rest is Noise". Pela descrição apercebemo-nos que se trata de um livro que aborda, de forma transversal e abrangente, os géneros, compositores, músicos e grupos que fizeram a história da música do Século XX - da erudita à experimental, do rock à vanguarda. Pelo teor do conteúdo, este livro de Alex Ross tem paralelismo com um outro que recomendo vivamente - este.
Resta saber se algum dia terá esta obra edição portuguesa.
Já agora, para perceber melhor a razão da existência de "The Rest is Noise", vale a pena ler a entrevista a Alex Ross.

E Alex Ross tem também um blog
Descrição breve do livro:
A sweeping musical history that goes from the salons of pre-war Vienna to Velvet Underground shows in the sixties. In The Rest is Noise, Alex Ross, music critic of the New Yorker, gives us a riveting tour of the wild landscape of twentieth-century classical music: portraits of individuals, cultures, and nations reveal the predicament of the composer in a noisy, chaotic century.
Taking as his starting point a production of Richard Strauss's Salome, conducted by the composer on 16 May 1906 with Puccini, Schoenberg, Berg and Adolf Hitler seated in the stalls, Ross suggests how this evening can be considered the century's musical watershed rather the riotous premiere of Stravinsky's Rite of Spring seven years later. Ross goes on to explore the mythology of modernism, Sibelius and the music of small countries, Kurt Weill, the music of the Third Reich, Britten, Boulez and the post-war avant-garde, and interactions between minimalist composers and rock bands in the sixties and seventies.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

O silêncio em nós


No último programa da RTP2 "Câmara Clara" (um dos poucos programas decentes e interessantes do panorama televisivo actual), da autoria da jornalista Paula Moura Pinheiro (na foto) discutiu-se um tema do qual hoje quase ninguém se lembra, pensa, reflecte: o silêncio. A necessidade e a importância do silêncio num mundo onde o ruído e os sons nos rodeiam de forma omnipresente. Dois convidados: o padre, poeta e escritor Tolentino Mendonça e o compositor Frederico Lourenço. Ambos dissertaram à volta do tema em questão, numa conversa bem interessante, arejada, aberta. Como era inevitável, falou-se da obra 4'33'' de John Cage, a tal peça "musical" que é apenas silêncio. A visão artística de Cage foi sintomática e visionária (nos anos 60) para dar a entender que o ruído aleatório e o seu contrário, o silêncio mais profundo, podem ser considerados música. Cage rompeu com as convenções estéticas da música contemporânea ao introduzir o elemento silêncio numa composição e abrir as portas à percepção sonora do nosso meio ambiente.
O tema do silêncio no cinema também daria pano para mangas (foi quase nada abordado no programa): cineasta como Antonioni, Bergman (deste bastava citar o filme "O Silêncio") ou Tarkovski são autores que passaram quase uma vida artística a abordar o silêncio na vida contemporânea, de como ele interfere na comunicação humana, na percepção da religiosidade e da espiritualidade. E o que dizer do silêncio na poesia? No teatro?
Uma coisa é certa: sem a possibilidade de fruir o silêncio, a nossa vida fica insuportavelmente austera, enclausurada sob si própria, sem espaço para a reflexão, para a interioridade.

Discos que mudam uma vida - 5


"From Gardens Where We Feel Secure" (1983) - Virginia Astley

Sobre a essência do Homem


"A apetência é a essência do homem."
Gaston Bachelard - filósofo

Desenhos fellinianos


A revista Sábado noticia nesta semana a edição recente em Itália de um livro do realizador italiano Federico Fellini. É uma espécie de diário no qual o cineasta de "Amarcord" expõe os seus pensamento mais íntimos ("é mais fácil ser fiel a um restaurante do que a uma mulher") e os seus desenhos surreais e delirantes sobre orgias, mulheres, sonhos, religião (tinha ódio aos papas) e demais devaneios. Este livro tem paralelo com um outro recentemente editado - "Desenhos Secretos" do cineasta russo S. M. Eisenstein (desenhos eróticos do realizador de "Ivan o Terrível"). Acaba por ser sempre interessante conhecer as facetas artísticas menos conhecidas dos grandes realizadores.
O problema do livro do Fellini é que tem uma edição reduzida e custa 300 euros. Talvez para o próximo Natal...

O espírito do tempo

Zeitgeist.
O conceito filosófico que os escritores românticos alemães (e sobretudo Hegel) tomavam como premissa revolucionária de um tempo, como uma idiossincrasia geracional, acaba por ser, em 2007, o título de um filme (documentário) de baixo orçamento sobre... a América. É um documentário feroz, denunciador, quase catártico nalguns aspectos. As alegadas estruturas morais e de valores sobre os quais os EUA se reclamam como pioneiros e defensores - patriotismo, religião, economia, família, política - são cilindrados em "Zeitgeist". Pela forma como o filme está concebido e realizado, pelo modo como denuncia uma sociedade que se julga impoluta nos seus dogmas mas que é um antro de hipocrisia e corrupção, este filme faz lembrar o controverso "Loose Change 911", documentário partidário das teorias da conspiração acerca dos atentados do 11 de Setembro de 2001.
Haverá, porventura, uma pitada de demagogia e de excesso (a que nem o Michael Moore se esquiva), mas vale pela forma como dinamita uma série de questões e força o espectador a ter uma posição altamente crítica face ao mundo que o rodeia. Como seria de esperar, os puritanos norte-americanos, defensores da moral cristã conservadora, vieram a terreiro deununciar a falsidade das mensagens do filme. É sinal que o objectivo do documentário foi conseguido: abalar as consciências adormecidas. Neste link - Zeitgeist - pode-se ver o filme integral, e ainda por cima com opção de legendas em português. É o que se chama de verdadeiro serviço público.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Até às 4h da madrugada

Vi este filme no cinema quando estreou, no longínquo ano de 1992. Já não me lembrava da impetuosa interpretação do grande Al Pacino (e não é só por fazer o papel de invisual). Revi "Perfume de Mulher" na TVI na noite de Natal - foi o filme melhorzito que deu em todas os canais - perdão, na madrugada do dia 25 (até às 4h!). O final do filme é particularmente impactante, pela performance de Pacino e pelo seu discurso sobre os valores da integridade e da liderança. Magnífico.

E agora algo completamente diferente


Foi uma bela prenda de Natal que recebi. Estive tentado a comprar a versão original, mas fiz bem em esperar: 500 páginas de sã loucura sobre a biografia dos Monty Python escrita pelos próprios (bom, Graham Chapman já morreu há uns anos, pelo que não terá sido ele a escrever. E daí...). Um pitéu para os próximos tempos de leitura.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Boas prendas e tal


Como já não devo postar até dia 25 ou 26, aproveito para desejar a todos os visitantes e leitores deste blog um bom Natal e muitas prendas no sapatinho (tudo menos peúgas e águas de colónia baratas). Ah! Paz e amor também são necessários para compor o ambiente. Verdade.
Abraços!

Como o gosto musical nos define


Deu-se a coincidência de ler no mesmo dia as revistas BLITZ e Super Interessante. E eis que ambas trazem reportagens sobre um tema que já se discute há muitos anos e que ultimamente tem sido alvo de séria investigação científica e académica: a relação entre a personalidade e os gostos musicais. Isto é, a neurociência e a psicologia comportamental têm revelado que as preferências musicais definem os traços de personalidade de cada um. Investigadores da Universidade do Texas (com coordenação do psicólogo Sam Goslin) e o psicólogo português Nuno Consciência, coincidem neste ponto: que a preferência por um determinado estilo musical - do rock ao blues, da clássica ao house, do jazz ao hip-hop – define o perfil de personalidade, tese comprovada através de experiências e testes realizados laboratoriamente. Os sons alteram a química do cérebro e despoletam descargas de substâncias neurotransmissoras, como a dopamina ou a serotonina. A música altera, de igual modo, o nosso estado de ânimo consoante a circunstância existencial e é um tónico para a alma. Existe um conjunto de vivências que nos direcciona para a fruição de um determinado género musical, com o intuito de libertar emoções provenientes dessas vivências. A música que ouvimos é, em última análise, um reflexo de nós próprios. Um jogo de espelhos, portanto.
Nuno Consciência vai mais longe e escalpeliza a relação entre psicanálise, música e criatividade. Logo, é natural que a música seja dos fenómenos actuais que mais contribui para a tribalização de um grupo, para a consolidação da sua identidade cultural e social. É a música que une os jovens e adultos que gostam de hip-hop, de heavy metal, de música vanguardista, de ópera, de rock. Secundariamente à uniformização do gosto musical, esses grupos geram à sua volta outros elementos identitários: a roupa, as atitudes, os códigos sociais, etc. A música é, seguramente, a linguagem cultural que mais contribui para agregar socialmente os indivíduos em grupo.
Segundo o estudo da revista Super interessante, foram detectadas as seguintes relações:
Hip-hop – tipo de personalidade: extrovertidos, enérgicos, solteiros, elevada auto-estima.
Rock – tipo de personalidade: activos, aventureiros e ateus.
Jazz/Blues – tipo de personalidade: inteligentes, criatios, liberais e tolerantes.
Ópera/Clássica – tipo de personalidade: casados, cultos, altos rendimentos, perigosos ao volante (!).
A minha dúvida é: e quem gosta, nem que seja um bocadinho e simultaneamente, de todos estes géneros musicais, qual será o seu perfil de personalidade? Arrisco que nem Freud seria capaz de traçar esse perfil...

A escola castradora


A última edição do semanário Expresso traz uma entrevista interessante com o compositor polaco Zbigniew Preisner (que acaba de editar um disco a meias com a cantora Teresa Salgueiro), conhecido pelas bandas sonoras que compôs para os filmes de Krystof Kieslowski (e também Wong Kar Wai ou Louis Malle). O seu estilo musical é facilmente reconhecível: composições orquestrais à mistura com elementos electrónicos ambientais e melodias instrumentais melancólicas. Ora, na referida entrevista, a dada altura e a propósito do auto-didactismo do músico, o jornalista pergunta: “acha que a escola pode ser um espartilho para o desenvolvimento da criatividade?”. Resposta: “Frequentemente sim, quando um aluno quer raciocinar pela própria cabeça e desenvolver autonomamente as suas ideias e o seu trabalho. Quando alguém quer fazer alguma coisa diferente, se tem espírito aberto para o exterior e para outras experiências, a escola prefere afirmar que isso não tem qualidade, ou que não se devem abrir excepções.”
Essa é uma velha questão, a de saber até que ponto a escola formata demais a cabeça dos alunos e impede a liberdade de pensar e de agir contra os fundamentos dogmáticos do ensino tradicional. Acabo por concordar com Preisner, uma vez que senti isso mesmo quando frequentava o curso superior de música: o sistema de ensino era demasiado rígido e afunilado num só sentido. Era um ensino vocacionado para o uniformidade incondicional de ideias e de conhecimentos. Basta dizer que a disciplina de História da Música parava no período da primeira Guerra Mundial (Debussy, Schoenberg, Ravel...). O estudante que quisesse conhecer a música criativa que se fez até aos nossos dias, teria de pesquisar por ele próprio. E falar aos professores de John Cage, Varèse, Stockhausen, Steve Reich ou... Velvet Underground, era quase uma heresia. Uma afronta intelectual.
E alguma vez pensaram porque é que os conservatórios de música se chamam conservatórios?

Conta comigo


A sociedade do espectáculo impinge-nos a ideia de que a época de Natal é a época do amor, do enaltecimento da amizade, da confraternização entre os homens. Seja. Curiosamente, ontem mesmo vi um filme que é o paradigma de todos esses valores, ainda por cima protagonizado por crianças: “Conta Comigo” (“Stand by Me”, 1986) de Bob Reiner. Baseado num conto do mestre do terror Stephen King, “Conta Comigo” relata uma bela história de quatro amigos de 12 anos que se envolvem numa aventura durante dois dias. Nesse espaço de tempo e durante esse percurso, cada uma das crianças revela os seus medos e sentimentos, num jogo de partilha e união entre todos. Os verdadeiros laços da amizade, do companheirismo e da experiência do crescer estão reflectidos neste filme original. Dois factos: 1) King prova que não é apenas um notável especialista na manipulação do medo, mas também um escritor sensível à exploração das emoções humanas; 2) River Phoenix tem neste filme o início da sua fulgurante e curta carreira, visto ter morrido aos 23 anos, após ter participado na saga Indiana Jones.

O estigma dos três efes


Parece-me que a trilogia dos valores do Estado Novo – Fado, Futebol, Fátima – continua bem enraizada na sociedade portuguesa. Só falta outro conceito também começado pela letra F – Família. Falta porque a evolução da sociedade ditou o declínio da instituição familiar, daí que já não tenha o mesmo peso de outrora. De resto, continuamos a viver sob o jugo identitário dos três grandes efes nacionais. Portugal continua a projectar a sua imagem exterior com base em que pressupostos? Mariza – Fado; Cristiano Ronaldo – Futebol; Religião – Fátima. Parece que são os únicos fenómenos verdadeiramente mobilizadores da nação portuguesa. Portugal é apenas isto? Quer o Portugal profundo, quer o Portugal intelectual e das elites, continuam a querer conotar o país com esta trilogia retrógrada. Até quando?

Quem vê TV


Houve um tempo no qual os programadores de televisão tinham critério na programação de cinema no pequeno ecrã. Houve um tempo em que se viam westerns clássicos ao sábado à tarde e filmes de culto em horário nobre nos dias de semana. Houve um tempo em que o noticiário era rigoroso, formal, objectivo e de duração certa. Isso foi num tempo em que a ditadura das audiências e a feroz política comercial dos canais privados não representavam obsessões quase paranóicas. Desde há muitos anos a esta parte, o serviço público de televisão é um conceito inexistente (que me perdoe Paquete de Oliveira), um mito que já não tem justificação no paradigma audiovisual moderno. O jornalista Ignacio Ramonet tem razão quando reflecte, num dos seus livros que são de estudo obrigatório para estudantes de comunicação social, que a televisão se rege unicamente por critérios sensacionalistas, superficiais e vocacionados para o espectáculo. Os programas de entretenimento são fátuos e de qualidade zero, a informação é ditada pelo lado trágico da vida, pelo lado sensacionalista e mediático, como se vivêssemos num enorme programa perverso de “reality show”. Por outro lado, a televisão pública tende a ser constantemente manipulada pelo poder político (constate-se a recente polémica da intromissão do Estado no controlo da informação da RTP com o jornalista José Rodrigues dos Santos). Cultura, ciência, educação, debate de ideias são conteúdos que assustam os responsáveis pela programação televisiva. À parte um ou outro programa da RTP com conteúdos educativos ou culturais (para fazer de conta que calam os críticos), o resto do panorama televisivo é de uma confrangedora boçalidade. Quem vê muita televisão (sobretudo os quatro canais abertos), acaba por se submeter a um lento e subtil entorpecimento mental. Haja paciência.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O filme começa no genérico inicial


Sabemos que um bom filme tem de começar por um bom... começo (não é redundância). Daí que o genérico inicial (opening credits) de um filme seja determinante para incutir no espectador o fascínio das imagens, a envolvência emocional do filme. Saul Bass fez alguns genéricos geniais para Hitchcock - como este ou este para Preminger. Nos últimos anos, David Fincher tem sido um dos poucos cineastas que atribui valor artístico aos genérico, talvez devido à sua formação inicial como realizador de videoclips. O genérico é uma arte e imprime identidade artística a um cineasta. Há um filme de Woody Allen em que a personagem interpretada pelo próprio realizador desiste de entrar no cinema porque já tinha sido exibido o genérico. Faz sentido. Podia ter perdido um genérico extraordinário. E poucas pessoas dão importância ao genérico no cinema, até porque já há muitos realizadores que optam por prescindir deles (o exemplo mais recente é o do filme "Control").
Neste âmbito, descobri um site interessante que elabora uma recensão dos 10 melhores genéricos de sempre. Tratando-se de uma lista de preferências, é sempre subjectiva, mas que tem por lá alguns genérico geniais, lá isso tem. E adivinhem qual é o genérico que está em primeiro lugar.

Música robótica

A propósito do post "Pintura robótica", eis um exemplo de um robô músico:

Pintura robótica


Leonel Moura é um insigne artista plástico, com notável trabalho em várias frentes de expressão (fotografia, arquitectura, pintura, instalações) e livros editados sobre cibernética, bioarte e inter-influêncais entre arte e tecnologia. Nos últimos anos tem-se destacado no campo da investigação robótica associada à arte. Isto é, a possibilidade de robôs poderem criar... arte (a que ele chama Arte Robótica). Estudando a fundo temas como a inteligência artificial e a tecnologia aplicada à arte, Moura criou em 2003 a primeira geração de robôs pintores capazes de produzir, de forma autónoma e baseados no comportamento emergente, obras de arte originais. Para tal, é elucidativa a entrevista que Leonel Moura dá no último número da revista de Exame Informática. Em duas páginas, o artista explica como é que programa os robôs para pintar, qual a reacção das galerias de arte às pinturas robóticas e como é que, num futuro não muito distante, os robôs serão capazes de ter sentimentos e de ter livre arbítrio. Isaac Asimov não diria melhor.

Vale a pena ver aqui.

Chaplin será sempre Chaplin


Acabei de ver mais um episódio da série "Chaplin Hoje", transmitida pela RTP2. Desta vez, o filme abordado foi "A Quimera do Ouro" ("The Gold Rush, 1925), com comentários do realizador do Burkina Faso Idrissa Ouedraogo. Magistral série, magistral filme, magistral cineasta e actor. Há uns anos comprei os DVD completos do Chaplin da editora Mk2 - e foi um prazer rever (ou ver pela primeira vez) as obras-primas do autor de "Tempos Modernos" e "Luzes da Cidade" em versões remasterizadas (som e imagem imaculados). E apercebi-me que Chaplin foi (continua a ser) um dos maiores mestres de sempre do cinema mundial (não só do período mudo), capaz de encenar a poesia e o amor em imagens inesquecíveis - "O Garoto de Charlot", "Luzes da Cidade" -, mas também a sátira demolidora - "O Grande Ditador", "Tempos Modernos" - e engendrar obras únicas de humor - "O Circo" e dezenas de curtas-metragens. No universo do burlesco, admiro imenso a genialidade de Buster Keaton, mas Chaplin será sempre Chaplin.
Pegando ainda no filme "A Quimera do Ouro", recordemos aqui a célebre dança dos pãezinhos, puro momento de criatividade visual de Chaplin:

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Discos que mudam uma vida - 4


"Requiem" - W. A. Mozart

O ponto alto do dia


"O ponto alto do meu dia é de manhã quando me masturbo no duche; a partir daí é sempre a descer."
Kevin Spacey in "Beleza Americana"

Luiz Pacheco - paradoxo com duas pernas - 2


Provocador por natureza (não por snobismo estilístico), Luiz Pacheco soube como poucos espicaçar sem pudores o meio literário português, como quando diz que inventou o “Neo-Abjeccionismo” para gozar com o Neo-Realismo (na altura vigente). Saramago conta neste documentário que este tipo de ideias do Pacheco eram sinais claros da sua personalidade irreverente e provocatória. O Prémio Nobel diz ainda que, nuns dias dizia muito mal da sua escrita, para noutros dias exaltar, serenamente, a sua genialidade. Saramago esboça um sorriso subtil e assevera: “Pacheco é o Pacheco”. “Mais um Dia de Noite” foi produzido pela Panavideo e gravado em Alta Definição (repare-se na qualidade da imagem e no contraste de cores), e teve o apoio da RTP. Ao longo de 58 minutos, brilhantemente filmados e montados, António José de Almeida desvenda um pouco mais do universo de Luiz Pacheco, da sua actividade literária e das suas relações com a própria família (a que chamava “tribo”). Se em termos de conteúdo e riqueza de informação o documentário “Mais um Dia de Noite” é de digno de menção, não o é menos em termos puramente formais. António José de Almeida conseguiu sacudir todos os lugares-comuns habituais na realização de documentários.

O equilibrado ritmo da realização (com efeitos especiais à mistura), a poderosa montagem, os planos dos entrevistados (e do próprio Luiz Pacheco), a fotografia de cores carregadas, a voz off sugestiva, o recurso a um actor que interpreta o escritor (brilhante pelo carisma com que recita textos de Pacheco) e a utilização vigorosa da música (desde temas de death metal a melodias celestiais), conferem a este documentário uma qualidade e uma originalidade inauditas no panorama do documentarismo português. A sua curta mas incisiva duração – 58 minutos – é outro ponto que joga a favor.

No fundo, “Mais um Dia de Noite” revela-se um precioso documento sobre a vida e obra de Luiz Pacheco. Não daqueles documentos que resvala para a homenagem e o tributo fácil (ideia que o próprio escritor deveria refutar), mas daquele tipo de documentos concebidos com profundo respeito e admiração pelo legado do escritor que alguém disse ser “um paradoxo com duas pernas”.

Luiz Pacheco - paradoxo com duas pernas - 1

Luiz Pacheco. Foi uma das personalidades mais insurrectas, marginais e criativas da literatura portuguesa do século XX (a par de Almada Negreiros e Mário Cesariny); foi um verdadeiro meteoro da escrita e da crítica, fulgurante espírito de sagaz mordacidade, capaz de descarnar as palavras da língua mãe como quem tosquia a lã de uma ovelha; foi um vagabundo das letras e da vida que nunca seguiu movimentos artísticos ortodoxos (pelo contrário, sempre se mostrou avesso a movimentos), nem nunca se mostrou interessado em fazer concessões ou deixar-se submeter a pressões do regime salazarista. Passou muitas vicissitudes na vida (mendigou), amou muitas mulheres (mais propriamente meninas), cultivou ódios de estimação (como o escritor Urbano Tavares Rodrigues), concebeu oito filhos de três mulheres distintas e rebelou-se contra a letargia da literatura portuguesa ao longo de várias décadas. A sua afeição pelo Surrealismo foi quase um epifenómeno, mas deixou marcas nele próprio e na geração que se lhe seguiu. Fruto da sua inquebrável consciência cultural e política e da sua abnegação artística, cedo procurou trilhar o seu caminho, lutando contra todo o tipo de estigmas (da censura e da igreja), pressões e convenções sociais.

A libertinagem criativa e vivencial de Pacheco constituiu um padrão de vida. A sua visão da vida e do homem passava por aceitar as diferenças e a marginalidade (como a homossexualidade e a promiscuidade sexual, temas diversas vezes abordados, sem preconceitos, em textos seus). O exercício da escrita e a promoção da literatura então desconhecida (através da sua importante actividade como editor) foi a fonte de energia que alimentou a vida do artista e do homem. Luiz Pacheco, de seu nome. Uma vida no fio da navalha. Ou do abismo. Tem agora 82 anos, está algo debilitado fisicamente e vive num quarto de um lar do qual não sai há cinco anos.
Um documentário (já exibido na RTP2), intitulado “Mais um Dia de Noite”, com realização de António José de Almeida, traz nova luz sobre esse singular autor que se apresenta desta forma: “Chamo-me Luiz Pacheco, já fui escritor, agora sou um fantasma”. Só que esse “fantasma” vive ainda em carne e osso, mantendo a mente lúcida e acutilante como sempre. Um verdadeiro espírito livre. Libertário. Neste documentário, podemos ver os depoimentos de José Saramago, Mário Soares (a quem um dia pediu 20 escudos emprestados!), Rui Zink, Vítor Silva Tavares, João Pedro George, filhos do Luiz Pacheco entre outros intervenientes directos ou indirectos na vida e na obra de Pacheco. E a obra de Pacheco é imensa, tendo colaborado com dezenas de jornais, revistas e lançado livros proeminentes da literatura portuguesa da segunda metade do século XX. É o caso de “Comunidade” (1964) e “O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor” (1970). Mas o seu legado não se fica pelo seu estilo de escrita subtil e frontal. O trabalho de edição foi um dos mais notáveis de toda a história editorial portuguesa. Em 1950 lançou a editora Contraponto e meteu mãos à obra: não se fez rogado e editou em pleno auge da ditadura do Estado Novo, autores “malditos” e até então desconhecidos como Marquês de Sade, Ionesco, Pirandello, Beckett, Pablo Neruda, ou os portugueses Herberto Hélder, Virgílio Ferreira, Mário Cesariny, Natália Correia e José Cardoso Pires. Pela sua forma de estar na vida, sem medos e sem temores de qualquer ordem, foi preso diversas vezes por certos textos que publicou e pelas mulheres menores com que se envolveu. De igual modo, uma das suas facetas mais polémicas é a de crítico literário. Não raras vezes gerou verdadeiras ondas de controvérsia no meio literário português, ao publicar as suas críticas viperinas sobre autores e obras.
Excerto do documentário:

De Profundis


Há um restolhal,
onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore castanha;
ali solitária.

Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer
Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas.

Os seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E o seu colo espera o noivo divino.
Na volta os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.
Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.

O silêncio de Deus

Bebi na fonte do bosque.
Na minha testa pisa metal frio

Aranhas procuram o meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.
À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Soaram de novo anjos cristalinos.

Georg Trakl (1887 - 1914)

Glass - música para cinema


No site do compositor Philip Glass estão recenseados 36 filmes para os quais compôs a música original. Apesar de não conhecer todos esses filmes (há uns 10 que ainda não vi), arrisco a elaborar as cinco bandas sonoras de que gosto mais (não necessariamente as melhores):

1 - "Koyaanisqatsi" - Real. Godfrey Reggio
2 - "Kundun" - Real. Martin Scorsese
3 - "The Fog of War" - Real. Errol Morris
4 - "Powaqqatsi" - Real. Godfrey Reggio
5 - "Dracula" - Real. Tod Browning

Seleccionar os melhores álbuns do compositor americano é um exercício muitíssimo mais árduo.

Admiração & respeito - 9


Nuno Rebelo - músico
Aqui

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Isto é rock

Há qualquer coisa de demencial nesta performance ao vivo dos Sonic Youth num programa de televisão norte-americano (algures nos finais dos anos 80). A energia da banda de Lee Ranaldo e Thurston Moore incendeiam o estúdio com um dos seus melhores temas de sempre - "Silver Rocket". Os riffs de guitarra, o ritmo em galope circular, a atitude dos músicos em "palco" e a improvisação noise pelo meio fazem desta performance um monumento de uma categoria inexistente: "melhor actuação live em estúdio de TV."

Arte e caos


"A tarefa actual da arte é introduzir o caos na ordem."
Theodor Adorno

Buñuel e o seu último suspiro

"O Meu Último Suspiro", livro escrito pelo realizador espanhol Luís Buñuel e pelo seu argumentista Jean-Claude Carriére, é um magnífico documento sobre o cinema, a arte e a vida. Editado três anos antes da sua morte (1983), Buñuel apresenta um manancial de memórias vividas e narra inúmeros episódios da sua carreira, desde a sua relação com Salvador Dalí e os surrealistas até às suas opiniões sobre armas (!), religião ("sou ateu graças a Deus"), sociedade, guerra civil espanhola, pintura, realizadores, padres, etc. Belo testemunho de um dos mais inovadores cineastas de sempre - autor do revolucionário "Un Chien Andalou".

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Que viva Eisenstein!


“Que Viva México!”, filme do realizador russo Eisesntein, centra-se nos costumes culturais mais representativos do estilo de vida mexicano, destacando-se pela riqueza expressiva e perturbadora. Eisenstein foi um esteta irrepreensível, um criador de algumas das mais importantes e originais imagens do cinema mundial. O realizador russo foi o autor de obras tão marcantes como “O Couraçado Potemkine”, “A Greve”, “Outubro”, “Alexandre Nevsky” ou “Ivan, o Terrível”. Para além de realizador, Eisenstein foi também um notável teórico e intelectual que influenciou grande parte dos cineastas mundiais que lhe seguiram. É célebre a sua teoria revolucionária da montagem e da utilização das cores no cinema.
Na sua riquíssima filmografia, consta um filme que se achava perdido até 1979: “Que Viva México!”. No auge na crise económica, em 1929, Eisenstein foi para Hollywood testar a sua capacidade na Indústria Cinematográfica. No entanto, o realizador russo optou por visitar o México no intuito de realizar um documentário sobre a etnia, a geografia e a diversidade cultural mexicana. Devido a problemas financeiros Eisenstein não conseguiu montar o filme. Criou-se então o mito que o filme “Que Viva México!” teria sido perdido para sempre. Porém, em 1979, o assistente de realização de Eisenstein, Grigori Aleksandrov, conseguiu restaurar e montar definitivamente o filme, respeitando ao máximo as longas anotações, desenhos (storyboard) e a rigorosa orientação do mestre Eisenstein, alcançando a definitiva versão e a mais próxima possível do projecto inicial. “Que Viva México!”, filme em quatro episódios temáticos, foi então revelado ao mundo como mais uma obra-prima do realizador russo, num trabalho minucioso que combina brilhantemente elementos etnográficos, políticos, artísticos, dramáticos e surrealistas, influenciando toda uma geração de realizadores de documentários. Filme de uma grande beleza formal, em que os planos são escrupulosamente pensados para desencadear um determinado efeito psicológico no espectador.
Uma obra esplendorosa.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Zíngaro - o artista imponderável


Carlos Zíngaro é um dos mais destacados músicos das novas correntes estéticas em Portugal, com uma riquíssima experiência artística ao longo de 40 anos de intensa e diversificada actividade musical. Nesta entrevista explana as suas vivências, ideias e pensamentos.

Imagine que não sabia nada a seu respeito. Como se definiria artisticamente?
Um simples indivíduo que sempre tentou encontrar outras formas de fazer e de existir. Que teimosamente insistiu na não evidência e na anti-rotina ainda acreditando ser possível hoje, aqui… Que continua a utilizar um secular instrumento de madeira quando cada vez mais os fascínios são para as “novas tecnologias” (que afinal também sempre o atraíram…).

O seu percurso musical, com 30 anos de intensa actividade, tem sido feito de forma independente mas com muitas resistências e alguma abnegação. Considera que foi devido ao país que temos ou por causa da linguagem musical outsider que tem vindo a praticar?
Permito-me referir que serão antes 43 anos visto ter começado a ser profissional (Orquestra Universitária de Música de Câmara) aos 13… O ser-se independente é muito relativo pois vão sendo sempre criadas dependências várias – se as primeiras “resistências” começaram pelos familiares e professores, tentei sempre, mal ou bem, o não corte com “quem não compreendia” as minhas insistências e roturas. O recusar integrar qualquer tipo de “escola” ou área parametrada e definida levou-me a confrontos difíceis de resolver por não ser “enquadrável” – apesar de, pontualmente, ter sempre “experimentado” as áreas mais distintas e reconhecíveis. Do rock ao fado, do MPP ao jazz, do erudito ao techno…

O Carlos “Zíngaro” foi um dos pioneiros do free jazz em Portugal, com o grupo Plexus e outras formações que fizeram história na chamada música de “vanguarda”. Porém, a sua formação vem da música clássica. Olhando para trás, como se processou essa vontade de ruptura e de experimentação?
Como já referido, a minha vontade de “experimentar”, a rebeldia em aceitar determinações “pré-fabricadas”, e um ensino claustrofóbico e castrante em que tudo o que era alheio à chamada “música clássica” não existia (infelizmente tendência já observada em alguns jovens docentes na actualidade!), empurravam-me irresistivelmente para o “pecado”… O “free jazz” surge também como reacção política, grito de revolta contra um sistema colonial violento e mortífero.

Os seus interesses musicais espartilham-se em diversas áreas e tem confessado influências que vão de John Cage a Béla Bartók, de Ornette Coleman a Jimi Hendrix ou Morton Feldman. No momento da criação, como processa e funde todas estas referências?
Difícil me é determinar um percurso programático quando me decido a “criar”. Sempre fui alheio ao conceito tradicional de “obra”, de “composição”, pelo que nunca me foi consciente a definição de percursos consoante esta ou aquela influência, este ou aquele “estilo”. Por que até quando componho improviso – apesar de a imediatez e o risco serem distintos – haverá sempre, do imenso aglomerado de influências, experiências e vivências (tantas vezes alheias ao acto musical), a necessidade de ser coerente e consequente, tentando um percurso pessoal que não seja mera colagem referencial e estilística.

O Carlos “Zíngaro” tem estado ligado intimamente às novas correntes estéticas da música de vanguarda dos últimos 30 anos, como interpreta e caracteriza a evolução das mesmas durante esse período de tempo?
Hoje em dia seremos inevitavelmente esmagados por uma industrialização, globalização, inflação de produtos que, aparentemente diversificando a escolha na prática empurram o indivíduo, seja ele produtor ou receptor, para escolhas que dificilmente têm a ver com opções personalizadas e autónomas. Se por um lado a miscigenação, a “mestiçagem”, poderão dar materiais riquíssimos, por outro lado a confusão e a indiferença vão-se instalando insidiosas sempre à espera do próximo entretenimento suficientemente apelativo ou social para que nos desloquemos dos nossos lugares comuns. Se analisarmos a história das artes no decorrer do último século e verificarmos o que foi feito por futuristas, dadaistas, surrealistas, construtivistas e outros inúmeros “istas” que sempre tentaram a alternativa ao instituído, verificamos como estamos pobres hoje.

Numa visão crítica descomplexada, concorda que o conceito de vanguarda está caduco hoje em dia? Se sim, a que outro conceito recorreria para classificar a música que pratica?
Como já alguém o disse sempre me pareceu “avant garde” um termo demasiado próximo de ficção científica ou antecipação mais ou menos fantástica… Para mim sempre se tratou do hoje, agora, actual e actuante na medida do possível. Nunca me interessaram – como evidente pelo exposto anteriormente – etiquetas, títulos ou exaustivas definições do que faço ou porquê. Sem pretender ser panfletário recordo que, toda uma movimentação sonora mais ou menos subterrânea e marginalizada senão ignorada, mais cedo ou mais tarde acaba por ser “reciclada” e adaptada pelo main stream – seja pelo pop/rock, nas bandas sonoras de tantos filmes de grande budget, como por hiper produções “eruditas” de altíssimo prestígio social…

A sua experiência de colaborações com músicos de renome mundial tem sido vasta e diversificada: Derek Bailey, Evan Parker, Tom Cora, Anthony Braxton, Peter Kowald, Steve Lacy, entre outros. Estas colaborações, para além do enriquecimento artístico que significam, resultam também de uma inerente necessidade de trocar experiências, de alargar fronteiras?
Sempre! Posso considerar-me um afortunado por ter tido a oportunidade de cruzar caminhos, tanto humanos como artísticos, com alguns dos grandes nomes das novas músicas. Quando, nos finais de 1960 e inícios de 1970 lia e ouvia alguns destes nomes à distância de quilómetros e da filtragem de um sistema esclerosado, dificilmente me seria imaginar que algum tempo depois poderia ser seu parceiro e colaborador. Ter a honra de ser considerado um amigo e um igual…

Compõe música para teatro e bailado. Consegue definir as fronteiras entre a composição musical e a sua actividade de improvisador ou é difícil destrinçar um e outro processo criativo?
Idealmente não deveria haver diferenças pois, como já referido, considero a actividade de improvisação e composição simultâneas e/ou complementares. Infelizmente na prática, e falando das músicas de cena ou “funcionais”, raramente é esse o caso pois é-se frequentemente conduzido para situações de ilustração sonora, ambientes décor, pontuação de acção ou transições “tapa buracos”. Depende depois do compositor a “arte” em conseguir ainda imprimir algum cunho pessoal ou resquícios de autonomia criativa a algo que mais não é que encomenda a integrar / servir “arte maior”.

É um cliché dizer-se que a improvisação mais não é do que um processo de composição instantânea (em tempo real), ou é muito mais do que isso?
“Mais não é…” inevitavelmente será a (errada) chave pois é muito mais! Apesar de pessoalmente fazer equivaler, em termos de prática composicional, as duas abordagens, ou de, sem dúvida privilegiando o aleatório e a improvisação, tento, mesmo que com um mínimo de parâmetros, conseguir outros processos musicais que dificilmente atingiria com uma disciplina mais académica ou matemática. Mantenho que nunca se conseguirá o fulgor, a “verdade”, energia, “elan” na interpretação de obra escrita que se consegue frequentemente na improvisação. Improvisação que se trabalha como técnica que é! Que se pensa e analisa como outra qualquer técnica ou forma.

É sabido que algumas correntes das músicas experimentais recorrem à renovação das linguagens através da apropriação e reciclagem de referências estéticas anteriores. Nesse sentido, concorda com a definição do Brian Eno quando diz que a música de hoje é 20% de inspiração e 80% de regeneração?
As proporções de Eno poderão ser algo falíveis mas será um facto que a tabula rasa aonde nada se inscreveu, aonde não houve um antes, uma qualquer variada influência é para mim inexistente. Considero ser justamente nas miscigenações e “reciclagens” que se poderão encontrar outras vias ou formas. Desde que não caia em algo que me afecta negativamente que é a colagem – a manta de retalhos de referências mais ou menos demonstrativa. Posto isto é um facto que vivemos uma época de tremenda confusão estilística e estética em que o poder da “máquina” manipula todo o pré-existente numa amálgama abusiva de acordo com critérios globalizantes de gosto percentual de índices de audiência. Em que a tecnologia acabou por, a par de todas as vantagens e avanços, determinar um facilitismo e nivelamento por baixo nesta propagada “democratização” de meios. Considero assim que, entre outras práticas, é a música improvisada, feita no local e no momento, a via possível para o renovar e o reacreditar no fenómeno musical vivo e actuante hoje.

Com o seu espírito libertário e criativo, consegue prever que caminhos musicais estará a percorrer daqui a dez ou quinze anos?
Se resistir o suficiente para lá chegar… a programação é difícil senão impossível. A continuada procura de outras formas e outras experiências. Um maior investimento em transdisciplinaridades que envolvam o movimento e a interacção tecnológica com o som e a imagem. Dedicar mais ao meu trabalho plástico em instalações que utilizem materiais tradicionais em confrontação / diluição com as mais recentes técnicas de vídeo e computação de imagem – e aonde, obviamente, a manipulação e “escultura” sonora será uma constante…

Entrevista conduzida por Victor Afonso e publicada na revista Hora TMG (Guarda)

Veredicto do DVD


É um site deveras indispensável para os coleccionistas de DVD: DVDVeredict é um espaço muito completo sobre as edições DVD internacionais, contendo críticas e análises aos vários itens de cada uma: argumento do filme, qualidade técnica da edição, extras, som, etc. Não estão recenseadas muitas edições ditas de coleccionador e de importação, mas por lá constam muitos DVD de interesse.

Coleccção Fassbinder


Eis uma belíssima edição em DVD: 7 filmes do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder, realizador maldito que atormentou as mentes conservadoras com os seus filmes sobre as múltiplas manifestações de marginalidade humana (sobretudo sexual). À semelhança de um Pasolini, Fassbinder era insubmisso e provocador, mas deve-se a este realizdor muita da melhor produção cinematográfica alemã (melhor: europeia) dos anos 60 e 70. O problema é que o pack custa 70€...

domingo, 16 de dezembro de 2007

Discos que mudam uma vida - 3


"Songs from the Liquid Days" (1986) - Philip Glass

Touching from a distance

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Comprei o livro em 1996, um ano depois de ser editado (Assírio & Alvim, colecção "Rei Lagarto). "Carícias Distantes" o livro da viúva de Ian Curtis, Deborah Curtis, no qual aborda o seu relacionamento com o malogrado líder dos Joy Division. Na altura em que li o livro, decepcionou-me de alguma forma, pelo facto de Deborah se centrar demasiado na vida privada e pouco no seu envolvimento musical, que era o que me interessava conhecer mais a fundo. Mas como é óbvio, um músico antes de ser músico, é homem (com as suas qualidade e defeitos). E neste contexto, Ian tinha defeitos (conflituoso, autoritário, instável), mas tinha também um coração de ouro (nas palavras de Deborah). Depois de ver o filme "Control" de Anton Corbijn, reli o livro e acabo por perceber a razão deste filme ser quase todo baseado no livro: Deborah escreve a biografia de Ian de forma apaixonada, com pormenores irrelevantes e outros importantes, contextualizando a sua carreira musical com a vida matrimonial. Faz sentido, e vendo o filme, percebe-se ainda melhor.
Gostaria um dia era de ler um livro sobre Ian Curtis (e respectiva versão dos acontecimentos)escrito pela amante, a belga Annick Honoré.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Espírito marxista


A sua figura, só por si, era já cómica o quanto baste. Bigode espesso pintado de negro, charuto ao canto da boca, falador sarcástico e dono de um andar bizarro. Chamava-se Marx, Groucho Marx. Na inscrição da sua lápide, por vontade prórpia, está escrito: “desculpem por não me levantar”. Piada derradeira de um homem que soube, na vida como na morte, usar o humor como instrumento de pertinaz sátira social, política e cultural. Possuía um extraordinário talento comunicativo, fruto da sua eloquência verbal que desconcertava quem o ouvisse falar. Sobretudo as mulheres, já que estas eram sobejamente o alvo preferencial do humor marxista. De resto, das mulheres achava Groucho que eram uma espécie humana de somenos expressão e que raramente as conseguia compreender. Olhava para elas com sobranceria e eram frequentemente objecto de piadas sexistas e cínicas.
Talvez no esforço de entender melhor a alma feminina tenha casado três vezes em diferentes fases da sua vida. A sua última subida ao altar deu-se já Groucho tinha 80 anos. Casou com a sua secretária, uma moça invariavelmente muito mais nova do que ele e que, curiosamente ou talvez não, tinha interpretado um papel num dos primeiros filmes de outro mestre do humor no cinema, Woody Allen. Coincidências? Groucho Marx conheceu o apogeu da fama com os célebres Irmãos Marx, pandilha de humoristas anárquicos, autores de alguns dos mais subversivos filmes feitos em Hollywood (“Um Dia nas Corridas”, “Uma Noite na Ópera”…). Devastaram cânones sociais, regras básicas da narrativa cinematográfica, romperam com convenções de estilo, e introduziram outro elemento primordial para o seu sucesso: a improvisação. Conta-se que no plateau a irreverência era total e que muitas vezes não seguiam o guião, improvisando sequências inteiras. É claro que por vezes o resultado era o cenário destruído, o guião de pernas para o ar, as actrizes acossadas e o produtor de cabeça perdida. Não havia limites para a criatividade dos Marx e o seu humor feito de situações absurdas e levadas ao paroxismo cómico resultou tanto em admiração como em ódio. Ainda hoje, depois de quase trinta anos do desaparecimento da morte do líder dos irmãos Marx, continua a haver legiões de devotos e de admiradores por todo o mundo.
Figuras com a do Groucho já não existem mais, capazes de subverter a ordem e continuar a assobiar para o lado como se nada fosse. Talvez a vida fosse mais divertida se tivéssemos uma certa dose de espírito marxista em nós.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O mal da cidade dentro do homem banal

Qual é o mal da nossa sociedade? O que é que a corrompe por dentro? O que leva um cidadão comum, com uma vida comum, um emprego comum, a rebelar-se contra tudo à sua volta, no espaço real de poucas horas? A podridão, a corrupção, o consumismo, a publicidade enganosa, o crime, o calor excessivo, a comida de plástico, a violência veiculada pela TV, os pequenos nadas que, acumulados, fazem enlouquecer esse homem comum? Afinal, ele só queria chegar a tempo a casa para o aniversário da filha. Mas a grande cidade, oh a grande cidade que tudo engole e não quer saber do indivíduo para nada, colocou-lhe milhentos entraves ao longo do seu percurso. O primeiro dos quais, logo ao raiar do dia, numa fila de carros. Uma fila de carros igual a todos os outros dias. Mas nesse dia em particular, a paciência rebentou. Esse homem comum, igual a todos nós, com camisa e gravata, trabalhador cumpridor, canetas no bolso e pasta preta, começa nesse momento a perder o controlo. Liberta-se e parte à descoberta do lado negro da cidade.
Uma viagem ao abismo dele próprio e da sociedade que o gerou, "Um dia de Raiva" ("FallingDown", 1993) é um incisivo e denunciador filme de Joel Schumacher. É a queda de um indivíduo comum que passa, de repente, de insípido cidadão a protagonista de um dia na cidade. Um dia. De raiva. Esse indivíduo é Michael Douglas, numa das suas melhores prestações de sempre, encarnando esse homem enraivecido por um conjunto de acontecimentos que fugiram ao seu controlo. Um filme que é um autêntico manifesto sociológico sobre os tempos modernos.
Todas as manhãs, ao ligar a televisão e ver as hercúleas filas de trânsito no acesso a Lisboa e Porto, lembro-me deste filme. E imagino o desespero estampado no rosto de cada um desses automobilistas, à espera de prosseguir a marcha por mais uns metros, para depois parar de novo e esperar, esperar, esperar, até chegar ao emprego. E espanto-me perante esta dúvida: não há, afinal, naqueles condutores, um Michael Douglas em potência?


Realidade ou imaginação?


"Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação."
Charles Chaplin

Contra a fé - linha avançada


Depois de Sam Harris e o seu livro "O Fim da Fé" (já abordado aqui); depois de Richard Dawkins e a sua contundente obra "A Desilusão de Deus", eis que Christopher Hitchens, eminente jornalista e escritor norte-americano, lança um livro ainda mais demolidor contra todo o tipo de credo religioso: "Deus Não é Grande". Hitchens não se limita a fazer um trocadilho fácil com a máxima "Deus é Grande" defendida pela cultura islâmica (não sei como Hitchens não foi alvo ainda de uma "fatwa"!). Vai mais longe ao derrubar tabus estabelecidos oriundos de quaisquer manifestações de fé, numa abordagem religiosa deveras radical e baseada num visão ultra-racionalista e crítica. O subtítulo diz tudo: "Como a religião envenena tudo". Ponto final. Numa entrevista, perguntaram a Hicthens se alguma vez tinha rezado na vida: "sim, rezei uma única vez para pedir um erecção mas a prece não foi atendida".
Seja como for, estes três autores representam a frente de ataque na discussão intelectual (cada vez mais acesa) entre criacionistas e evolucionistas norte-americanos. Harris, Dawkins e Hitchens levam o ateísmo às últimas consequências como raramente se viu. O debate mantém-se aberto e controverso.

O dilema dos artistas


"Todas as crianças são artistas. O problema é como continuar artista assim que crescem e ficam adultas."
Pablo Picasso

A futura condição pós-humana


Na sequência do post sobre Oliver Sacks, sugiro a leitura do livro "O Nosso Futuro Pós-Humano" de Francis Fukuyama (sim, o mesmo de "O Fim da História e o Último Homem"). Neste livro, o autor disserta sobre como a biotecnologia, a nanotecnologia, a genética molecular, entre outras ramificações avançadas da ciência, vão revolucionar (estão já a revolucionar) a condição humana, e gerar a condição pós-humana.
Na esteira deste livro (e de outros que serão abordados oportunamente), está a crescer cada vez mais uma corrente (simultaneamente) filosófica e tecnológica designada Transhumanismo: tem como ideal a superação das limitações físicas e mentais do homem com a ajuda da ciência e da razão com vista à eliminação da doença, do envelhecimento e, um dia quem sabe, da própria morte. Não é ficção científica e alguns dos mais reputados cientistas do mundo trabalham com vista à consumação dos objectivos transhumanistas: aqui e aqui.

Oliver Sacks - a música cura e enlouquece


A última revista Sábado traz uma entrevista com Oliver Sacks, conhecido neurologista americano. Ficou mundialmente famoso com o livro "Despertares" adaptado ao cinema por Penny Marshall em 1990, e que contava com os actores Robin Williams e Robert de Niro. Sacks tem dedicado parte da sua vida a estudar a influência que a música tem nos seus doentes, nomeadamente, naqueles que sofrem de doenças degenerativas como Alzheimer ou Parkinson. O resultado das suas investigações e experiências revela que os sons são um remédio para a demência (não é novidade absoluta), mas que também podem levar à loucura uma pessoa mentalmente sã (esta afirmação já contém alguma novidade). Conta um caso de um pianista que sofre de uma variante grave de Parkinson que mal se conseguia mover com espasmos nervosos. Um dia senta-se ao piano e interpreta brilhantemente um "Nocturno" de Chopin. Assim que parou de tocar, voltaram os sintomas da sua doença. Este é apenas um exemplo (entre muitos) do poder que a música exerce sobre o nosso cérebro. A mais recente técnica de pesquisa cerebral - a ressonância magnética funcional, demonstra que ainda há muito para descobrir sobre o modo como o cérebro humano responde aos estímulos sonoros e musicais. Mas uma coisa é certa - a música tem propriedades terapêuticas incríveis (a musicoterapia é uma ciência comprovada). Já Edwinn Gordon, reputado teórico
O livro "O Efeito Mozart", editado há uns anos em Portugal, demonstra inúmeras provas de como a música exerce um poder curativo e regenerador no homem (e não só no homem, uma vez que está comprovado que a música de Mozart incrementa o crescimento de plantas e a produção de leite nas vacas). Quanto à questão da música poder levar à loucura é algo muito mais difícil de comprovar. É o mesmo que afirmar que a pintura ou a escultura ou o cinema levam também à loucura. Se não há predisposição para qualquer tipo de esquizofrenia ou paranóia, se não há outros estímulos e circunstâncias que ajudem a desenvolver a loucura em alguém, como se pode afirmar que a música, por si mesma, "leva à loucura"? Ficaremos loucos se ouvirmos de forma patológica determinado disco, género musical ou grupo? Será que o Death Metal ouvido pelos jovens influencia actos de violência (como já foi sugerido?). Será que ouvindo obsessivamente Leonard Cohen ou Erik Satie entramos em depressão? Neste campo teórico, é muito mais perigoso e difícil comprovar laços de causa-efeito.
Oliver Sacks terá de trabalhar ainda muito para provar esta premissa teórica.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Discos que mudam uma vida - 2


Dead Can Dance - "The Serpent's Egg" (1988)

Educação artística - motivos de reflexão


O tema da educação artística no âmbito do sistema educativo, ainda que nem sempre compreendido ou valorizado pelos governos e instituições com responsabilidades, é de fulcral interesse para o futuro de uma sociedade. Como diz o reputado neurocientista António Damásio, “é necessário que a educação evolua de acordo com o princípio de que separar o processo cognitivo do emocional é um erro”. De facto, para além das disciplinas cognitivas, é essencial integrar nos currículos escolares as artes e as humanidades, áreas imprescindíveis à formação de cidadãos responsáveis dotados de espírito crítico. Neste contexto, o papel do professor de educação artística é, para além do ensino das técnicas, proporcionar meios e mecanismos de expressão de sentimentos e entendimento da realidade que rodeia o aluno. O papel do professor (e da escola) é ser um mediador, formador de cidadãos conscientes, criativos, interactivos e participativos na sociedade. A arte nas suas múltiplas manifestações contribui para o desenvolvimento emocional, afectivo e social da criança e do jovem. Potencia a capacidade de imaginação da criança, fá-la compreender melhor o mundo e desenvolver o gosto estético por todas as coisas. Enquanto que noutros países da União Europeia (sobretudo nórdicos) há décadas que introduziram o estudo das expressões artísticas no ensino básico, em Portugal, com o nosso secular atraso, só há 2 anos é que tal está a tomar forma com o programa de Enriquecimento Curricular no 1º Ciclo do Ensino Básico.
Quanto mais cedo se insistir nesta vertente, melhores cidadãos serão formados para o futuro. O secretário-geral da UNESCO, Koichiro Matsuura, afirmou que “devemos encorajar os mais novos a desenvolver talentos artísticos. É importante que dancem, que cantem. Não é necessário que sejam artistas profissionais mas, que através disso, se tornem cidadãos responsáveis”. No seguimento deste raciocínio, há que referir a existência de inúmeros estudos académicos que provam a importância da educação artística no desenvolvimento cognitivo e social da criança. O que importa referir é que é essencial que os professores deste país se consciencializem da necessidade de facultarem aos seus alunos (dos mais variados níveis de ensino) oportunidades de contacto com o mundo das artes, da criatividade, do conhecimento e da cultura. Se essas oportunidades não existem na escola (ou por falta de professores especializados, ou por falta de meios), então a solução é sair das quatro paredes da escola sempre que possível e partir ao contacto directo com esse mundo das artes (visitas a teatros, cinemas, museus, galerias de exposições, casas de cultura, etc).